Ao longo destes 70 anos, alguns formatos se consagraram na televisão brasileira e se tornaram até sinônimos dela na cabeça dos telespectadores, como o telejornalismo do Repórter Esso e do Jornal Nacional, os programas de auditório com Silvio Santos, Chacrinha, Flávio Cavalcanti ou Raul Gil, os festivais dos anos 1960, os reality shows do século 21 – Big Brother Brasil e A Fazenda, entre outros – e, é claro, as telenovelas.
Com raízes históricas na radionovela, fundada no teleteatro e sendo realizada ao vivo em seus primeiros anos, a telenovela é um dos lugares privilegiados das transformações tecnológicas e sociais vividas pela televisão. “Sua especificidade consiste na questão: até onde um programa de entretenimento pode chegar, passando a desempenhar uma função social, política e principalmente cultural no País?”
A provocação vem da professora da ECA Maria Immacolata Vassallo de Lopes. Coordenadora do Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva (Obitel) e do Centro de Estudos de Telenovela da ECA, Maria Immacolata defende que a telenovela é o principal produto cultural do Brasil.
A professora reconhece a telenovela como um produto da cultura latino-americana, sendo o Brasil – e hoje, mais especificamente, a Rede Globo – responsável por um de seus paradigmas (o outro seria a novela mexicana, com o predomínio das produções da Televisa). O ponto determinante, para Maria Immacolata, é a capacidade de a telenovela ser o que chama de “narrativa da nação”.
“A telenovela não expressa o Brasil como ele é, mas também não o abstrai”, explica a professora. A chave seria a ideia de imaginário. Como os imaginários são construídos na relação entre a obra de um autor e um telespectador ativo, a pesquisadora realça a importância de se reconhecer a autoria das telenovelas. “O que é formado é um imaginário de nação, no qual não é possível se falar em certo ou errado.”
Uma característica da telenovela brasileira para a qual a professora chama atenção é seu caráter de “obra aberta” – uma referência ao conceito trabalhado pelo pensador italiano Umberto Eco. “Ela é uma obra aberta no sentido de que está sendo feita no ar”, destaca, referindo-se ao processo de escrita das telenovelas, realizado enquanto elas são transmitidas e que recebe influências da recepção do público.
A complexidade da narrativa das telenovelas nacionais é outro diferencial que Maria Immacolata encontrou em décadas de pesquisas, nas quais vem comparando a produção brasileira com a de outros 12 países ibero-americanos. “A telenovela brasileira é difícil. As pessoas acostumadas a um outro paradigma se perdem nos nossos núcleos, no emaranhado de histórias que acontecem ao mesmo tempo”, revela.
rês momentos distintos podem ser identificados na história da telenovela brasileira, de acordo com a professora. O primeiro, iniciado com a pioneira Sua Vida me Pertence, é marcado por um estilo fantasioso. Já o segundo representa a virada realista da produção nacional, iniciada com Beto Rockfeller.
Considerada um divisor de águas nas telenovelas brasileiras, Beto Rockfeller surgiu em 4 de novembro de 1968 pela TV Tupi, desafiando o prestígio que a Excelsior avolumava no formato. Com linguagem coloquial, uso de locações, um protagonista anti-herói e aproximação com o público, a produção se libertou das atuações exageradas e tramas fantasiosas. “A partir daí, a telenovela começa a falar do Brasil, começa a falar da nação, dos mais diferentes modos”, pontua a professora.
Hoje, as produções poderiam ser caracterizadas como “naturalistas” para Maria Immacolata. “É quase como se fosse um documentário, apesar de ser ficção.”
Com todas essas reflexões acumuladas, a professora entende a telenovela como um recurso comunicativo. “É como uma matéria-prima que pode ser usada no momento em que for possível. Eu gostaria muito que o governo olhasse mais para as telenovelas e delas pudessem sair políticas públicas”, complementa.